sexta-feira, 10 de abril de 2009

VALE MAIS QUE UM TROCADO...

Por Rodrigo Ratier




"Dinheiro eu não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?" Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário de seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas de NOVA ESCOLA: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse - e conferiria as reações.



Para começar, acomodei 45 obras variadas - do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier - em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar. Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais.




Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram. Como 74% afirmam terem sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema.




No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vitor*, 20 anos, vendedor de balas. Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:


- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.



Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vitor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro - "Esse do castelo, que deve ser de mistério" - para presentear a mulher que o esperava na calçada.




Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela*, 15 anos. Ela é parte do contingente de dois mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a um real uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da avenida Tiradentes, no centro. Fiz a pergunta de sempre. E ela respondeu:




- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura? provocou antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.



As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico*, 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro:



- Sabe ler?, perguntei.




- Não..., disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:



- Sim. Sei, sim.




- Em que ano você está?




- Na 4ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos? indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.



Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela Avenida Brasil levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.




Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura. Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...




- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou com sensibilidade um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.




Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria*. Carregava a pequena Vitória*, 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.




* os nomes foram trocados para preservar os personagens.



Caro Rodrigo,
Atitude exemplar e louvável. O relato de sua experiência comove e sensibiliza. Este foi o principal motivo pelo qual reproduzi seu texto na íntegra. A partir de seu exemplo, existe a esperança de que outras iniciativas assim possam surgir. Não só nas ruas de São Paulo, mas nas ruas de todo o Brasil. Que seu caminho e sua mente sejam sempre iluminados.
Um grande abraço
Nice Pinheiro

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