
— Como assim?
— O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.
— Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
— Isso é um segredo entre mim e Deus.
— Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
— Eu sou a contradição de Deus – vangloriou-se o Diabo.
— Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da "catequese" que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: "Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?"Crusoé confirmou. Então Sexta-Feira concluiu: "Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?" Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
— O que você responderia? – indagou o Diabo.
— Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
— Mas eu figuro na Bíblia! – exaltou-se ele.
— O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa "terra" e Eva,"vida". A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
— Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
— Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor, há liberdade, inclusive de se fechar a ele.
— E no inferno, você acredita?
— Fico com Dostoievski, "o inferno é a incapacidade de não poder mais amar". Borges frisa que "é uma irreligiosidade" crer no inferno.
— Mas eu sou real – insistiu o Diabo.
— Deus não tem concorrente – rebati. Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.
Frei Betto é escritor, autor de "Treze contos diabólicos e um angélico"
(Editora Planeta)
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