segunda-feira, 28 de julho de 2008

SONORIDADES E SILÊNCIO...

por Michael Kepp



Música instrumental ao vivo requer a ausência de outros sons. A platéia pode acompanhar um cantor, mas só pode participar de um concerto ficando em silêncio. Essa música, da clássica ao chorinho, pode me hipnotizar. E qualquer ruído pode, como o estalar de dedos do hipnotizador, me trazer de volta à realidade. Os barulhos que os brasileiros fazem nesses recitais quebram o encanto e reproduzem a cacofonia da rua, da qual eu busco breve refúgio.




Esses ruídos também distraem os músicos, sejam celulares, seja o proibido pipocar de flashes de câmeras, que pode fazer um artista piscar sem parar. Recentemente, o pianista César Camargo Mariano achou o estalo da abertura das latas de cerveja em seu primeiro solo tão intrusivo que disse à platéia, numa mistura de ironia e irritação, que a música não fora composta para incluir aquela pontuação metálica.



O que mais me distrai em concertos é o barulho que se faz devagar, achando que não atrapalha. Um exemplo é a perua que passa cinco minutos abrindo o zíper da bolsa, procurando a bala, abrindo a bala e fechando o zíper com a mesma lentidão. Outro é o marmanjo que passa dois movimentos de uma sinfonia triturando suavemente um pacote de amendoins.





Nenhuma sala de música deveria permitir que se coma e se beba nas poltronas, mas muitas aqui permitem. Em casas de espetáculo, onde você tem esse direito, muitos abusam. Pedem comidas e bebidas durante os números musicais, e não entre eles ou antes de o show começar. Mas os garçons não ouvem os pedidos por causa da música. Então, o freguês repete aos gritos. E o tamanho do pedido, que estica a interrupção, me dá a impressão de que veio apenas comer e tem a sensibilidade musical de uma porta.
Os brasileiros são verbalmente abusivos em outros lugares onde deveriam ficar quietos. Enquanto professores dão aulas, alunos de todas as idades falam ao celular, mesmo na primeira fila.



Recentemente, o ginecologista de uma amiga atendeu ao telefone três vezes durante o exame. Em vôos transcontinentais, já passei noites em claro devido a cariocas que viram as noites em conversas.Cinemas também não são apropriados para socializar depois que a luz se apaga. Mas fico menos irritado com diálogos em cinemas do que em salas de música. Pelo menos, nenhum músico é desrespeitado. Numa exibição de "O Segredo de Brokeback Mountain", dois estranhos bateram boca tão alto que alguém gritou: "Dá um beijo nele". Mas nada engraçados são os bate-papos em recitais de música de câmara, que me forçam a soltar "psius".



Perdôo palmas fora de hora porque são frutos do desconhecimento de convenções musicais, mas não os outros barulhos feitos em concertos aqui, frutos da desconsideração. Uma sala de música não deve reproduzir os ruídos da rua, e sim ser um santuário contra eles. Uma platéia cria seu ambiente ideal ficando sossegada.
Só então pode formar com o músico um acordo tácito, para explorar sonoridades e os silêncios entre elas.





MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

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