- Central de atendimento do AA – Anônimos Anônimos, boa tarde. Com quem eu falo?
- Pergunta besta. É lógico que não vou dizer.
- Ah, é um dos nossos. Qual o problema, alguma recaída?
- Claro. Por que acha que estou ligando? Pra ficar falando de mim, que eu sou o máximo, que eu faço e aconteço? Se telefonasse pra isso seria um indício de cura, e conseqüentemente não precisaria ligar para o plantão. Na verdade, não é bem uma recaída. É uma reclamação.
- Ok, senhor. Pode falar.
- Vou falar, mas o mínimo necessário. O suficiente pra que você me entenda e aconselhe. Na última reunião do AA vocês vieram com uma conversa que eu tinha de passar por uma prova de fogo: tirar minha carteira de identidade. Bom, num esforço sobre-humano, saí pra providenciar. Aí o sujeito lá do Poupatempo apareceu com um formulário que era um verdadeiro inquérito pra cima de mim. Queria saber meu nome, endereço, local de nascimento, disse que precisava tirar foto... imagina o absurdo, tirar fotografia! Depois de 54 anos incógnito.
- Mas o senhor tem 54 anos e até hoje não tem identidade?
- Meu anonimatismo é severo, grau 5 – quase 6, minha filha.
- Sim... prossiga, estou anotando.
- Anotando? Anotando o quê? Exijo que rasgue imediatamente seus apontamentos. Se alguém lê pode identificar o problema relatado com a minha pessoa, e aí eu me torno conhecido. Respeite meu direito ao anonimato. Não se esqueça que essa regra consta no código de ética dos Anônimos Anônimos.
- De fato, senhor. Desculpe a indiscrição.
- É bom que me respeite mesmo. Meu avô foi um Sicrano inveterado, meu pai foi um Beltrano de marca maior e eu sou um Fulano com F maiúsculo. Três gerações de gente que graças a Deus passou despercebida por este mundo de pessoas que só querem aparecer. Uma célebre dinastia de desconhecidos, da qual nunca ninguém há de ouvir falar.
- Tudo bem, Sr. Fulano. Pode continuar contando o seu problema.
- Alto lá. Um anônimo que se preza não conta coisa nenhuma a quem quer que seja, ainda que a senhorita seja também uma anônima para mim. Sabe como é, as paredes têm ouvidos, os telefones têm grampos e há poucos lugares no planeta não esquadrinhados por uma câmera de segurança. Talvez estejamos ambos, no momento, sendo vigiados por um terceiro. Quem sabe um quarto, quiçá um quinto... só de falar já me apavoro.
- Mas senhor, é preciso convir que anonimato tem limite.
- Limite? Só se for pra você. O anonimato é a liberdade extrema, é justamente a ausência de limite. Ninguém me cobra nada – nem deveres, nem favores, nem prazos, nem satisfação de coisa nenhuma.
- Mas o senhor não tem amigos, não trabalha?
- Trabalho numa Sociedade Anônima. Não tenho a menor idéia de quais são os meus sócios e tudo vai muito bem assim, do jeito que está. Até pouco tempo atrás só aparecia lá na empresa pra assinar o pró-labore. Ia disfarçado de mulher, mas desconfiei que estavam me reconhecendo. Agora arrumei um testa-de-ferro que cuida de tudo, se passando por mim para que eu continue passando em brancas nuvens. Igualzinho o cara que assina este texto. Pra quem não sabe, ele não existe. É pseudônimo.
(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Nenhum comentário:
Postar um comentário