sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

CONCORDO EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU....


A banda dos corações solitários,
por Urariano Mota







Está sujeito a todo tipo de intempérie o indivíduo que escreve. Digo, sujeito a insultos, socos, tiro, exílio no deserto e, tão raro quanto um oásis, a alguma palavra boa, confortante, de alma generosa. Os insultos, os socos, doem mais.


Um texto anterior, O rei Roberto Carlos e a ditadura, me fez cair uma tempestade na cabeça. O rei, que no começo da carreira mandava tudo mais para o inferno, me fez cair num círculo de leitores que me mandaram para o mesmo lugar. Os mais leves disseram: “Prezado escritor, do qual eu nunca ouvi falar: como você tem a ousadia de falar mal de uma pessoa que deu tantas alegrias ao povo brasileiro?”. Esse “do qual eu nunca ouvi falar”, de passagem, como uma navalha que sulca o pescoço, muito bem, esqueçamos. O que importa é: como é que me atrevo? Se falasse bem, não importa o que falasse, estaria certo. Se falar mal, como ele pensa que falei, estarei errado. Entendam, por favor: o rei é o rei, mas o exercício de crítica é soberano. Dizer que Roberto Carlos é a melhor, ou a pior, a escolher, referência musical da ditadura, não é bem falar mal, é bem dizer de quem reduziu o mundo, em época de angústia e terror, a meu bem, meu bem, meu bem .... ao infinito. Numa civilização, numa terra que se fizesse digna de Noel Rosa, esse óbvio nem precisaria ser escrito.

Outro, mais direto, jogou um punch: “... ou será que ele, o cronista, é um jurássico bolchevista que pensa que ainda existe URSS, e que os milicos de 64 estão vivos e mandam no governo Lula?”. São 4 perguntas e um só ponto de interrogação. Mas as gentilezas são bem mais de 4. Vejamos apenas uma: jurássico, aos 57 anos, jurássico é um pouco forte, não? Imagino que não se queira dizer que o cronista já foi expulso do ventre da mãe como um animal pré-histórico. Faz mais sentido dizer que assim como existem fãs de mercadorias medíocres, a que chamam de meu rei, assim também existem indivíduos que possuem um cérebro do tempo dos dinossauros. Faz sentido, é possível, porque nem todas patologias estão classificadas. E com isto, o adorador do produto ruim quer dizer que: a) socialista não gosta de mercadoria; b) socialista é um ser ultrapassado, velhíssimo, do tempo de 1917. Em a) e b) existem exagero e uma extraordinária ignorância. Mas aqui não há espaço para essa discussão. Importa mais dizer (e este deve ser o objetivo do fã) que essa discussão sobre ditadura, sobre seus reflexos na arte, é uma coisa já morta. Em nome da inteligência dos que lêem estas linhas, adiante.

Cheguemos à melhor parte, ao melhor dos torpedos. “São tantos os questionamentos, que só posso chegar à conclusão, meu amigo, que você nesta vida não deve ter sido bem-amado. Senão, saberia o sabor de cantar algo tão lugar-comum, mas tão gostoso como: ‘como é grande o meu amor por você’”.
Bueno, entenderam? O nível é um pouco abaixo da inteligência das pedras. Tentemos, no entanto, dialogar com esse gênero de natureza física: hipócrita leitor, meu gêmeo, meu irmão: o amigo já se deu conta da quantidade e da qualidade de desamor que existe no mundo? Você já olhou em torno e procurou ver a quantidade e a qualidade de pessoas insatisfeitas? Se não tem olhos para uma volta, olhe-se, meu gêmeo, meu semelhante: o que há mesmo de felicidade, de plena satisfação, na sua vida? Sim, vamos supor, somente por hipótese, que o meu gêmeo seja casado com a melhor mulher do mundo, e se não existe ainda essa categoria, vamos buscá-la no guiness.
Vamos supor que tudo que sua mente sonha ela satisfaz, e de tal maneira que você, assim é o gênero da felicidade, sempre em mão dupla, você também a satisfaça, em tudo que ela sonhou ou sonha. Vocês são belos, saudáveis, ricos, jovens, experientes, sensíveis, inteligentes, e o que mais? O universo está a seus pés. Imaginou? - Meu irmão, meu gêmeo, meu semelhante: que felicidade vazia, compadre. Um autor, com um pouquinho de imaginação, seria incapaz de pintá-la. Porque vejas, e me permitas a mudança de pronome, para que eu seja mais claro: vejas: se tens a juventude, não tens a experiência; se tens a sensibilidade, não tens a saúde; se tens a riqueza, não tens a mulher que te ame somente pela beleza dos teus olhos. Porque, não sei se consigo a felicidade da expressão, em um mundo tão desigual, infame, ninguém pode ter sensibilidade e ser feliz ao mesmo tempo, ninguém pode ser rico e possuir um amor que não seja uma mercadoria. Não é o diabo? Pois não é próprio do amor a oposição ao que se troca no mercado? E não é próprio da gente que ama a doação como o prazer de ganhar?

Então veja, meu gêmeo, meu semelhante: se Roberto Carlos cantasse o desamor, seria mais verdadeiro. Se não verdadeiro, porque para isto deveria ter talento, se não verdadeiro, pelo menos mais próximo de uma universal experiência. Se ele, num profundo e impossível delírio, se juntasse a Erasmo, a Wanderlea, a Jerry Adriani, a Martinha, a Ronnie Von, veja só que time de arromba, veja só a qualidade dos artistas, e com eles formasse uma Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta, ah, decididamente estaríamos imaginando a mais bufa das comédias já escritas. Porque veja, um Coração de Visita não é um Cartão de Visita. Num cartão a gente escreve, Roberto Carlos, o Rei. Num coração a gente grava
“Nosso amor que eu não esqueço e que teve o seu começo numa festa de São João morre hoje sem foguete sem retrato e sem um bilhete sem luar e sem violão.Perto de você me calo tudo penso e nada falo tenho medo de chorar.Nunca mais quero o seu beijo pois meu último desejo você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga se você me quer ou não, diga que você me adora,que você lamenta e chora a nossa separação. Às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto que meu lar é um botequim que eu arruinei sua vida que eu não mereço a comida que você pagou pra mim”.

Isto é Noel. Deveríamos nos referir a isto assim, para maior glória do seu criador: isto é Noel !!!!!!!!!!!!!!!!!!!! , e ainda assim, não teríamos expressado o que recebemos, a pancada que sofremos, diante do seu sentimento e visão. Porque na arte há uma empatia, uma comunhão de almas, que os crentes às vezes tentam, quando com fervor se recolhem em oração. É um diálogo entre nós e o melhor de nós, que antes dela jazia adormecido. Não sei se me entende. Não vale um tostão furado a composição que cante para outros a sua última cópula. Sim, claro, a arte também canta o amor, a felicidade, se com isso ela expressar bem mais que uma exibição oca, do gênero “estou feliz, porque estou, porque sou feliz, porque amo, eu amo, amo etc.etc.etc.”.
A felicidade é uma pérola rara, é uma orquídea muito frágil, é uma flor de mandacaru que só dura uma noite. É preciso que se esteja muito embrutecido para que se sinta esse transitório com a duração de um ano, ou de uma vida. Felicidade, meu gêmeo, meu hipócrita, é um animal ameaçado de extinção. Há quem diga que já morreu.
Mas nem por isso devemos afundar na mesa do próximo bar, empunhando um revólver contra a têmpora. Há um sabor bom no amargo, e os bebedores de café bem forte sabem o que eu digo. Baudelaire preferia absinto. Nós, para não nos matarmos de vez, nós, da Banda dos Corações Solitários, preferimos ler um e-mail, uma mensagem curta, de um grande fã de Roberto Carlos. O e-mail assim dizia: “Cuidado! Inveja é uma doença crônica e incurável”. São coisas assim que sustentam os nossos dias na terra.

(*) Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Nenhum comentário: